25 abril 2016

OS FILHOS DE ABRIL


O homem não teria alcançado o possível se,
repetidas vezes, não tivesse tentado o impossível.
Max Weber












Ei-los que chegam de todo o lado às ruas, praças e avenidas a louvar a Festa, que em tempos foi bonita pá, sim senhor e agora, muitos anos depois, tanta água do rio que passou e que percebe não volta a passar, para o bem e para o mal da esperança que sempre nos conforta.
Eles são os filhos da Revolução, a quem passamos um património pleno de convulsões e contradições. São agora maiores, vacinados pelos tempos amargos dos dias de chumbo que ainda nos assolam, pela sua tremenda marca.

São altivos e sabem porque a árvore não deu frutos, pelo menos os suficientes para alimentar a luta que deve ser permanente, como a Revolução, que assim nos ensinaram. E se contestamos quase tudo, tal não contestaremos, porque faz parte da nossa cultura.
A rua nos obriga a vir gritar a Liberdade. Desceremos a Avenida proclamando o reinado das pessoas dignas e lembrando os tempos “…dos passeios que demos/Pela cidade? Dos dias que passámos/Nos braços da cidade?/Coleccionámos gente, rostos simples, frases/De nenhum valor para além do mistério[1]

Os filhos de Abril sabem que devem continuar a tarefa suprema de interpretar a Democracia na sua plena asserção. Que lhes compete lutar quando as forças nos começarem a trair. Agora, no tempo em que estamos lado a lado, queremos sempre saber se basta “…agitar a malta”, ou se o que faz falta mesmo “…é dar poder à malta”[2]. Acreditamos que sim, que a nova esperança que reina em Portugal seja a afirmação de poder mudar, de poder inovar, de poder construir.

Sabendo que a “liberdade está a passar por aqui”, embarquemos na Maré Alta[3] de Abril, gerações juntas na mesma empresa, rio de esperança, flor sem tempo, terra da fraternidade!

25 DE ABRIL, SEMPRE!




[1] Extracto de “Surrealismo/Abjeccionismo”, Alexandre O´Neill, 1963

[2] Referência a canção do Zeca
[3] Extracto da canção, Sérgio Godinho, 1971

17 abril 2016

O ABRIL DA NOSSA MEMÓRIA







Da memória colectiva se escreve um país, se constrói uma identidade, se afirma uma vontade imensa de Liberdade. Crescemos de certa forma com Abril, no ano 74 do já passado século, que contudo é a nossa referência de conceitos, princípios e determinação pela mudança. Fizemo-nos adultos, formamo-nos cidadãos, afirmando valores de contestação de uma sociedade podre, castradora e ruim. E, convém não esquecer, repressiva e asfixiante, na vertente fascista nacional protagonizada por lacaios de uma ideologia nefasta da crueldade e da miséria. Passamos por tudo isso, privamos com todos os que sempre acreditaram. E “Foi então que Abril abriu/as portas da claridade/e a nossa gente invadiu/a sua própria cidade”[1]. O exemplo de uma tribo que emergiu quando necessário, tornando dia a longa noite, acordando para a dignidade.

Passaram tantos anos, tantas desilusões, tanta água que, ao invés de limpar a sujidade e a miséria, parecia alimentar a fonte da iníqua injustiça. Nunca se deixou de lutar, é verdade, mas parecia sempre uma luta desigual, uma frente que avançava num ritmo tão lento que exasperava. Alguém teria dito “Temos fantasmas tão educados/que adormecemos no seu ombro…”[2] . Eles que porventura nos tolhiam o espírito e nos toldavam a memória? E nos dificultavam o raciocínio lógico que permitiria vislumbrar mais longe do que a varanda do sótão? Se pudéssemos enterrá-los, explodiriam as consciências e libertaríamos a tribo de Abril para a sua verdadeira vocação, rejeitar os dogmas e afrontar o poder, restaurando a dignidade perdida, promovendo a esperança.

Escrevemos hoje 17 de Abril, porque não podemos esquecer o mesmo dia do ano 1969. Em Coimbra, lançaríamos nesse dia um firme e violento golpe no regime fascista, que iria continuar nos meses seguintes com acções de luta, na academia e junto das populações. E levaríamos a Lisboa a 22 de Junho, na final da taça de Portugal uma das manifestações que mais abalou o regime e que levaria a substituição do ministro Saraiva, um dos pilares do fascismo marcelista.

A circunstância de a Esquerda ser agora maioritária no Parlamento e apoiar um Governo que reverte os malefícios de 4 anos de chumbo e de mais de 30 de compromisso, em nada afecta o apelo irresistível da rua para ocupar um espaço de luta permanente, a 25 de Abril e no 1º de Maio. Assim pugnaremos sempre por uma sociedade que aposte nas pessoas e não nos malfadados mercados, fonte de desigualdade, exploração e corrupção.

Na imensa vaga passadista que atravessa a Europa, o poeta no Governo, poderá ser a afirmação da benignidade da política, levando a imaginação ao poder, ou pelo menos a Cultura a um lugar que perdeu durante anos a dignidade a que tem direito.

Abril abre portas na nossa memória…

 [1] Extracto de “As Portas que Abril Abriu, José Carlos Ary dos Santos, 1975
[2] Extracto de “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, Natália Correia, 1957

03 abril 2016

A IMPORTÂNCIA DA TRAVESSIA

Da leitura de um artigo de revista retiro um ensinamento. O autor diz, na sua aparente simplicidade, “…para mim, passar o rio já era um acontecimento”, uma asserção modesta e soberba ao mesmo tempo. Diria que redundante, não fora (para o autor) a principal e crucial medida da sua existência. Um artista, jovem, que marca o tempo na arte de rua, transportando afinidades e cumplicidades para os muros e praças, com rostos de gente que trabalha e luta na azáfama dos dias sem tempo. Cruzo com ele (fazemos sempre o mesmo quando nos agrada a sentença) a travessia que faço diariamente, a caminho do trabalho. Ele falava precisamente disso, quando atravessava o rio, o outro lado da cidade grande era sempre o destino. Ao mesmo tempo, um apelo terrível a criatividade, é de um artista que trata a matéria. Ao engenho de rever corpos e coisas misturadas nas ruas e avenidas, a procura de um mimetismo, muitas vezes escuso. Paro a pensar se a travessia, invariavelmente a mesma, tem significado diverso consoante o estado de espírito ou a marcha do tempo, que sempre soma. Procuramos qualquer coisa que marque o ritmo de forma constante e sem saltos ou, ao revés, esperamos algo que diariamente nos surpreenda? Provavelmente cada um encontrará para si o sinal correcto, a medida mais ou menos exacta, diletando para si uma qualquer fuga em frente, simplesmente para não querer pensar.

Vale sempre atravessar em vez de ficar no mesmo sítio, paráfrase da retórica interpretativa a que cada um tem direito, na liberdade do acto e na disponibilidade para a acção. Por mim, prefiro a travessia, mesmo contando que do outro lado pode estar o inesperado. Aí, vale mesmo a pena.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?