30 dezembro 2023





























O terror do fim do ano

Vem na vertigem, ufano

Vai e volta qualquer dia

E não pensa na Poesia.

Seja ao calor ou ao frio

Não muda o curso do rio.

Pega o touro pelos cornos

Mas instiga discursos mornos,

Não sabe tomar partido

E prefere o sonso contido.

 

Que se dane o fim do ano

A questão é que no quotidiano

Empurramos a aventura p´ra mais além

Talvez p’ró ano que vem.

Partimos a esperança a meio

Tal como um pão de centeio

Miramos de longe o objecto

E (alegremente) assobiamos p´ró tecto.

 

Há quem queda insatisfeito  

O sistema não é perfeito

Premeia quem nada faz

E olvida quem está cá atrás.

Quem vier antes que abra a porta 

Faz rima, mas é letra morta.

Venha então a porra do espumante

E a estúpida passa, adiante...

 

No mural lá para o Leste

Diz-se “o país está muito feliz”

Vamos ver se aqui neste

É como o mural diz.

       

Lúcio Lima, 31 Dezembro 2023


23 dezembro 2023

 RECORDAR É AJUDAR A AGIR!

 

Pode parecer estranho, nas véspera de mais um Natal, trazer este tema, que é mais que uma música e uma letra. 

·       https://www.youtube.com/watch?v=JH5dHUo2Uik

 

É uma denuncia com 86 anos de que que deveria ser lembrada a essa gente dos EUA, que pretende um regresso ao passado e que continua a actuar, dentro e fora do País, de uma forma ostensiva contra as liberdades e pelo amesquinhamento das democracias, subordinado SEMPRE a sua “missão” ao alargamento de um império falido e decadente. 

E que tem nesta Europa em que vivemos a sua principal colónia. Vassalos e cúmplices.

 

Cito a mensagem que deixei no Facebook, “Que bem se poderia aplicar ao "panorama" da Faixa de Gaza. Os culpados estão entre nós...”

Quanta verdade, quanta tristeza.

Quanta raiva.

 

Relembro ainda a origem do tema em questão: “O tema “Strange Fruit” tem por base um poema de por Abel Meeropol, datado de 1937, é um desafio e uma denúncia ao RACISMO AMERICANO, que continua vivo nos EUA e lembra os linchamentos sofridos por afro-americanos. A “fruta estranha” é a imagem do corpo de um homem negro pendurado numa árvore. A canção com base neste Poema foi interpretada pela primeira vez por Billie Holiday, no ano de 1939, no Café Society em Nova York. Depois de Billie, muitos outros intérpretes gravaram o tema, aqui ficam alguns: Ella Fitzgerald , Nina SimoneDiana Ross , Robert Wyatt , Jeff Buckley ,  Cassandra WilsonSting,  , Lou RawlsPete Seeger , Dee Dee Bridgewater , Cocteau TwinsUB40Colette Magny...Olhem para o que Isreal está a fazer em Gaza, vejam quem apoia aquele Estado for-da-lei e descubram as “diferenças”...”

 

E termino, desafiando os CENSORES do Facebook, quais pides não-disfarçados, a “agirem em conformidade”.

BILTRES!

 

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PS: dedico este desabafo ao António Garcia Pereira, que foi hoje censurado, com um grande abraço solidário.


17 dezembro 2023

 PODE SEGUIR (PS) OU PODE NÃO SEGUIR (PNS) ?

 

Após a esperada vitória de Pedro Nuno Santos (PNS) para Secretário-Geral do Partido Socialista (PS), a comunicação social exulta com a percentagem obtida pelo outro candidato, afinal “o seu candidato”. Que é uma “percentagem significativa”, que é “preciso ter em conta os votos que alcançou”, que este PS, agora de PNS, não é todo igual e outras que não retivemos, mas que nos levam a pensar, qual é a notícia afinal?

Pensávamos (pelos vistos mal) que a notícia seria a vitória estrondosa de PNS, mas estranhamente (ou não) a comunicação social burguesa tem outra interpretação. O que nos leva a concluir que a notícia não interessa nada. O que importa afinal parece ser a história por trás da notícia, um modelo que é seguido, sem excepção alguma, por Rádios, TV, Jornais, que tentam (com grande sucesso, diga-se de passagem) moldar a chamada opinião pública com uma narrativa cuidadosamente montada e que tem sempre como objectivo central a desinformação e a criação de um cenário que existe numa bolha e que pouco (às vezes, nada) tem a ver com a realidade. É sempre assim, infelizmente.

 

Pode então seguir?

Se pode, analise-se por favor o discurso de vitória de PNS. E, nesse entretanto, poderá dizer-se que, na parte que nos toca, tirando o costumeiro (e gasto) discurso sobre “europeísmo”, (mesmo que “crítico”, como PNS o classifica), é difícil discordar, no que reporta a conceitos-chave da Esquerda e que significam, se aplicados e desenvolvidos, os valores que Abril instituiu. Vejam-se os casos do aumento do salário e sua dignificação, do cuidado a ter na questão da habitação, na preservação do SNS (conquista de Abril e que “eles” votaram contra e agora defendem), na defesa dos direitos dos jovens, mulheres e idosos (faltam aqui os homens, mas subentendem-se), da Escola Pública e todos os que têm a ver com o “País Inteiro”, asserção que PNS utilizou para aportar a um “Povo”, entendido, ao que parece, como e quem trabalha e faz “crescer” o País e que nos parece transportar ao “país inteiro com vidas escondidas” que, um dia, Maria Lamas quis retratar, na sua cruzada insistente como activista política, na luta pelos direitos das mulheres, durante ao Estado Novo.

 

 

Mas, pode não seguir?

Pode, caso o discurso não passe além. Afinal, andamos a ver isso durante muito tempo. Andamos a ver e a aceitar muito do empenho em afirmar “belas palavras”, que adicionadas às tais “contas certas”, não passaram (e não passam) de um engodo, para melhor serem aplicados (todos, insisto, todos!) os princípios neoliberais. Que assim revestidos e enroupados, passam como necessários e por vezes até, inevitáveis. Assim acontece, quando entra a “questão europeia” e as regras hediondas do défice e dívida. E então acontece mesmo a tal inevitabilidade, que leva muitas vezes a que ouçamos: nós bem gostávamos de, mas as regras não deixam. E que têm, desgraçadamente, algum sentido.

 

E então, em que ficamos?

Ficamos à espera. Sim, parece ser essa uma opção sensata. Na verdade, PNS poderia eventualmente aproveitar esta vitória inequívoca, para afirmar, fazendo, afinal é ele que nos diz, que é preciso fazer. Contudo, fazer, implica fazer bem. E fazer o que é preciso fazer, nomeadamente escolher o lado certo, que é, sem qualquer dúvida o de quem trabalha, o de quem produz, o de quem detém apenas a força de trabalho para sobreviver, muitas vezes, nas condições mínimas que o capitalismo neoliberal lhe “oferece”. E nem sequer é preciso “hostilizar” o capital, segundo uma conhecida tese social-democrata. Basta apenas fazer o que é necessário para acabar com os privilégios, com a política rentista, com as situações de favor, muitas vezes escandalosas, que tornam o País “partido aos bocados”. Se PNS quer (e não há qualquer razão para duvidar) um País inteiro, então que mostre que tem que ser assim mesmo. Fazendo. E fazendo bem.

 

E a “moderação”?

A insistência na “moderação” significa apenas uma coisa: investir contra quem defende o que é preciso, para mudar uma sociedade podre e um sistema decadente. O outro senhor, alcandorado por toda a comunicação social, poderia bem estar noutro qualquer partido de Direita, à escolha. O seu discurso, pobre, vazio e insistentemente chato, é típico de todos aqueles que querem mudar umas coisinhas, para que fique tudo na mesma. É o discurso do conformismo e da submissão. É o espelho da indiferença perante as questões sociais mais prementes. É a manifestação da política dos grandes interesses, travestida com intenções duvidosas como, por exemplo, “...somos o partido do bom-senso”. Sabe-se bem o que tal significa. Foi o que vimos com a maioria absoluta do PS.

 

Siga!

Diria que, para “poder seguir”, PNS tem hoje uma oportunidade de ouro para mudar o Partido. Com uma percentagem daquelas, que mais parece um avanço de vinte e tal pontos para ganhar o campeonato, poderia atrever-se “apenas” a pôr em marcha a máquina, afinal ele até foi Ministro das designadas infraestruturas, que incluíam os comboios. Só tem mesmo que não mudar de linha, não inverter a marcha, nem ficar muito tempo parado em qualquer apeadeiro. Olhar com atenção para sua Esquerda e não dar prioridade à direita, uma coisa que apenas acontece na estrada e, mesmo assim, com muitas restrições.

 

Uma forma de desfazer o equívoco PS-PNS.


11 dezembro 2023

ARTIGOS DO MÊS DE NOVEMBRO 23 – DIÁRIO 560

 
A ESPIRAL DO SILÊNCIO
2 Novembro 2023
 
A imposição deliberada do silêncio serve uma estratégia perversa, uma espiral voluntariamente desenhada com o intuito de ocultar a história, mesmo que tal possa parecer uma impossibilidade. Não são quaisquer forças do mal, hipoteticamente ao serviço de teorias da conspiração, arquétipos de crenças sobre manipulações secretas, mas sim realidades bem vivas sobre acções deliberadas e intencionalmente apostadas numa narrativa unipolar para impor uma verdade, um pensamento, uma solução. Para tal, nada melhor que a “construção” de mais um muro, neste caso na Faixa de Gaza e que oculta uma chacina criminosa. O silêncio é, neste particular, uma posição, à qual se remete o “ocidente civilizado” perante a acção terrorista dos que apostam na passagem da ocupação violenta ao extermínio organizado. 

 

Proponho-vos um recuo a 8 de Julho de 2022. Nesse dia passariam 50 anos do assassinato de Ghassan Kanafani, co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina, pelos serviços secretos israelitas. E foi precisamente naquele dia que o médico palestiniano Yasser Jamil Fayad lhe rendeu um tributo muito especial, num texto particularmente sensível, parte de um livro que sairia a público uns meses depois, com o título “Ghassan Kanafani – anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina”, publicado pela Editora Fedayin.  Nele se evoca o Homem que foi, para além de activista da causa palestiniana, um destacado intelectual e escritor e que abraçaria o internacionalismo revolucionário, anti-colonialista e anti-imperialista, um dos que viu os seus compatriotas sofrer. Sofrimento que Yasser classificou como a horrenda e execrável expulsão forçada de mais da metade do povo palestiniano das suas terras e de como se reorganizou, em campos de refugiados e tendas, a resistência e a luta nas décadas que se seguiram. Yasser lembrou, a propósito, os crimes cometidos por Israel, particularmente entre Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009, com a utilização de armas químicas (fósforo branco), que dizimaram as populações. 

 

O som do silêncio “ouve-se” actualmente no mundo ocidental, onde é notória uma cultura de cancelamento. Não começou com a guerra da Ucrânia (vem de muito antes), mas foi esse um dos pontos mais altos, com os tristes episódios, de índole macarthista, das proibições de canais de televisão russa, de espectáculos e de obras de arte de autores russos. Continuou e intensificou-se, impondo uma verdade e um pensamento únicos. Culmina hoje com a posição hipócrita da dita União Europeia, colónia dos Estados Unidos da América, perante Israel, um país fora da lei e com um governo corrupto e terrorista, que criou o grupo Hamas, que, por força dos ensinamentos, é obviamente também terrorista. Mas não é esse o entendimento da maioria esmagadora da comunicação social ocidental, vendida ao Império e completamente subjugada aos seus interesses. Para esta, apenas o dito grupo é terrorista, a outa parte, é apenas, um “país aliado”. 

 

Um dos autores que teorizou o “cancelamento” foi o jornalista norte-americano Walter Lippmann. Em 1922, publicou uma obra, considerada fundamental para o estudo da comunicação social nos EUA, designada “Opinião Pública”, na qual formulou a tese de que os cidadãos não respondiam directamente aos factos do mundo real, mas que viviam, ou eram forçados a viver, num “pseudo-ambiente”, composto por imagens projectadas nas suas mentes e oriundas de uma comunicação social devidamente treinada e naturalmente subserviente ao poder do dinheiro. Muito embora, na segunda fase da sua vida, se tenha “convertido” ao mercado, à boa maneira americana, deixou-nos a interessante tese “the manufacture of consent”, em português, "fabricação de consentimento", que supõe um processo de construção das mentes. E foi aliás, com base naquela tese que os norte-americanos Noam Chomsky e Edward Samuel Herman, lançaram em 1998 a obra Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media, em que descrevam a comunicação social como um mero negócio, com base na propaganda. 

 

Poder-se-ia perguntar a qualquer pessoa se alguma vez se sentiu intimidada por expressar a sua opinião, porque era simplesmente diferente da maioria. É uma situação típica dos tempos que correm, que tem como consequência directa uma espiral de silêncio e um cancelamento conveniente. Numa circunstância dessas, a pessoa, muito provavelmente, ou expressa livremente a sua posição, ou, pelo contrário, cala-se e entra numa espiral de silêncio, deixando de manifestar o seu pensamento com receio de ser rejeitado pelo seu grupo social.

Alguns estudos sobre a espiral do silêncio datam dos anos setenta do século passado e tiveram, na cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann e na sua obra “The Spiral of Silence: Public Opinion – Our Social Skin”, (em português, “A espiral do silêncio: Opinião Pública – a nossa Pele Social”), uma expressão significativa. Ao analisar o comportamento social, face aos meios de comunicação de massa, a Autora reforça a ideia de que as pessoas tendem a calar-se quando percebem que a sua opinião é minoritária ou contrária à opinião dominante na sociedade, com receio de serem criticadas ou mesmo ridicularizadas, quando não, inclusivamente isoladas.

 

Constata-se, com relativa naturalidade, que as sucessivas ofensivas militares judaicas contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia foram sempre protegidas por uma espiral de silêncio dos principais meios de comunicação mundiais controlados por aquilo que é o lobby judeu transnacional, um poder imenso, incarnado pelos detentores do capital e ao qual o “ocidente civilizado” se rende vergonhosamente.

 

E entretanto, os inocentes estão, uma vez mais, em silêncio. 

Um outro silêncio foi escrito em livro por Thomas Harris (The Silence of the Lambs), publicado em 1988 e depois passado para a tela por Jonathan Demme, em 1991. Netanyahu não tem a classe de Hannibal Lecter, mas, tal como ele, é um monstro, com uma mente psicopata, com uma fixação especial em destruir palestinianos. Aqui, a espiral do silêncio é arquitectada no morticínio em massa. Os mortos não falam. Deixam apenas um silêncio enorme atrás de si.

 

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ANÁLISE DO RITMO DO PODER

9 Novembro 2023

A perda de legitimidade da análise é hoje uma constante. E só mesmo com um esforço significativo se consegue chegar ao patamar mínimo, que é a passagem do pensamento crítico à expressão falada ou escrita, de uma ideia, ou de um pensamento. Os argumentos que são utilizados na discussão política, não passam, na maior parte das vezes, de arrufos obliterados, de tão ténues na sua essência e de tão pobres na sua significância. É hoje vulgar, sobretudo na comunicação (dita) social encontrar, por um lado, um profundo desprezo pela racionalidade e, por outro lado, uma falta de ritmo que é normalmente associada a uma espécie de paragem na solução de continuidade que é congruente com o fluir das ondas e, consequentemente, se estende ao desenvolvimento do próprio pensamento criativo.

O Poder tem um ritmo que por vezes não é compatível com a situação política. Existe uma impossibilidade prática de separação dos ritmos que envolvem o investigador e o investigado, na sociedade urbana atual. Se atentarmos à agitação provocada pela demissão do Primeiro-Ministro em Portugal, identificamos de imediato um ritmo uniforme, que tem a ver com o imediatismo e o espectáculo da “crucificação” da pessoa que ocupa o cargo, ficando para trás outras variáveis, como por exemplo, as causas da demissão, ou um hipotético envolvimento com eventuais arguidos. O que parece importar é apenas quem lhe irá suceder, aparecendo os nomes habituais e mais alguns que entretanto são avançados pelos comentadores que pautam a agenda mediática e, consequentemente, a agenda política. Fora de qualquer análise está, como sempre, uma mudança de políticas, o necessário diálogo com os intervenientes para a resolução dos problemas nas mais diversas áreas, enfim, uma análise séria legitimada em pressupostos identificáveis. Não deixa de ser curioso constatar que a análise seja centrada em uma só pessoa, ao ponto de se questionar que lugar irá ocupar em Bruxelas, ou noutro qualquer centro de Poder, na dita “União”. Não deixa de ser curioso também o facto de ser o ritmo do Ministério Público, a pautar a agenda mediática.

O final do século XIX e o início do século XX marcaram o nascimento de uma corrente filosófica designada “Ritmanálise”. O responsável pela autoria, foi o matemático e físico português Lúcio Pinheiro dos Santos, um Homem dotado de uma forte personalidade de grande capacidade pessoal e ainda de uma imensa combatividade cívica e política. A ele se associaram os conhecidos filósofos franceses Gaston Bachelard e Henri Lefebvre, ampliando estudos e investigação sobre a matéria, que entretanto carece de algum aprofundamento na actualidade, de forma a constituir-se como uma possível ferramenta, na análise e na retórica discursiva. Lefebvre fez, a partir da década de 1930, importantes estudos a respeito da imaginação na literatura e na produção de imagens literárias, a partir dos conceitos de ritmanálise, assinalando que a mesma, busca integrar através da noção de ritmo, tanto o que é social quanto o que é natural, para reconstituir uma unidade entre ambos. E sublinha a importância das rupturas sociais, porque é afinal a transformação da sociedade que está em jogo e que implica uma nova relação entre o espaço e o tempo. O critério adoptado é o das representações e decisões políticas. Na verdade, para haver mudanças, é preciso que um grupo social ou uma classe, intervenham, imprimindo um ritmo numa época, seja através de reformas, seja pela força. Segundo a sua tese, a ritmanálise tem como princípio a ideia de que a matéria não está inerte, indiferente ao tempo ou tão pouco numa duração uniforme.

Um dos objectivos da ritmanálise é de tratar das diferenças, das rupturas dos ritmos do quotidiano. É necessário dar a devida atenção à descontinuidade, através da combinação entre instante e ritmo.

O ritmo de vida actual substitui a “resistência” pela “resiliência”, a luta por direitos pelo conformismo, o diálogo pela aceitação tácita, a independência pela sujeição a poderes não-eleitos, a subordinação da economia à política pela financeirização e pelo poder da banca e do dinheiro, a livre expressão pelo condicionamento e, em alguns casos, pela auto-censura. Um vórtice imenso que transformou as democracias ocidentais em meros instrumentos onde dominam os burocratas e os censores, os notários e os banqueiros.

Ver hoje o organismo que tem por finalidade “garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos”, ao ritmo do mediatismo e do populismo, é deveras confrangedor. Sendo o Ministério Público, um órgão do poder judicial, que participa, com autonomia, na administração da justiça, com competência para exercer a acção penal, não pode ficar fora da análise cidadã.

A oportunidade que escolheu para, na prática, derrubar um governo, sem se preocupar em formular qualquer acusação em concreto, é sintomática da tentativa de impor um ritmo próprio. Que é devidamente marcado e corresponde a um movimento coordenado, uma sucessão regular dos tempos fortes, tal como na música. E que influencia, de forma emocional, uma sociedade, os seus comportamentos e actos, os seus anseios e esperanças, enfim, a sua vivência social e natural.

É o ritmo de um poder, que escapa seguramente às exigências prementes de uma Democracia, pelas piores razões, porque nega a sua essência de princípio unificador e escolhe deliberadamente o lado errado da existência.

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SOBERANIA e AUTONOMIA

16 Novembro 2023

 

A ideia de “soberania”, data do século XVII, surgindo na ordem jurídica internacional sob a capa de instituto jurídico, para que o Estado se pudesse afirmar como um elemento essencial para o seu desenvolvimento e afirmação. Soberanos são considerados os estados que ostentam a conhecida máxima "Um governo, um povo, um território", atribuída a Max Weber. Soberana é também a dívida, por ser considerada como o conjunto das dívidas assumidas ou garantidas pelo Estado, pelo menos no sentido estrito. Soberano é, segundo as definições habituais, aquele que detém o poder, o povo soberano, ou aquele que exerce o poder ou a autoridade sem restrições, neste caso, o governo soberano.

 

No século XX e no século em que vivemos, cultiva-se um conceito especial do termo “soberano”, naturalmente extensivo à reportada “soberania” e que pode ser associado a quem decide sobre o estado de excepção, bastando para tal recordar os tempos da pandemia, em que se usou e abusou da ideia, numa prática tipificada em sucessivas decisões estatais, em que ostensivamente abundaram as decisões para suspender a lei, justificando para tal uma “emergência estatal”. Recorde-se que o referido conceito foi explorado e difundido pelo filósofo e jurista alemão Carl Schmitt, um convicto defensor do regime nazi e que tal classificação se referia às vertente legal, constitucional e política da soberania.

 

Mas foi no século XIX que terá avançado um conceito jurídico de soberania, que supõe que ela pertence, de facto, ao Estado e não a qualquer autoridade particular. E mais, conforme as vastas formulações do filósofo alemão Immanuel Kant e do pensador político suíço Jean-Jacques Rousseau, que será a noção jurídica de soberania que orienta as relações entre os Estados, enquanto potências, e que tal princípio será a base da Constituição de cada país. 

 

Assim é, no nosso País. A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 1.º, que “Portugal é uma República soberana”, condição especificada no artigo 2.º, “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”. E determina, no artigo 110.º, os Órgãos de Soberania que exercem os poderes soberanos do Estado: Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais.

Um organismo muito em foco nos últimos anos, é o Ministério Público. O artigo 219.º da Constituição, estabelece-lhe as respectivas funções e estatuto: “Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. No Portal do organismo, pode ler-se que o MP é “...um órgão de administração da justiça, integrado na função judicial do Estado” e ainda “...é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos”.

 

Um conceito que está de certa forma ligado ao de soberania é o de “autonomia”. A etimologia do termo é grega e significa basicamente “lei própria”. Em ciência política, tal se pode associar, quer à faculdade de se governar por si mesmo (ou se reger por leis próprias), quer ainda a liberdade ou independência moral ou intelectual. Um conceito também utilizado em Educação e que reporta substancialmente à responsabilidade social da comunidade educativa, mas também à qualidade do “ser autónomo”, para mais adequadamente cumprir uma missão social específica.

 

A hiperactividade recente do MP, que, apesar de ter autonomia, não é um órgão de soberania, é preocupante, quer do ponto vista ético, quer na perspectiva do exercício de um poder quase espectral, na assertividade que deriva de um desejo de exercício de uma espécie de contra-poder, bem ao gosto das teses do antropólogo francês Lévi-Strauss. Uma situação perfeitamente evitável, mas porventura justificável, na perspectiva de quem parece pretender instalar uma certa confusão no que reporta ao exercício daquilo que se pode hoje apelidar de justicialismo na política, naturalmente ao arrepio da designada legalidade institucional.  Possivelmente, uma autonomia hiperactiva, de contornos muito pouco democráticos e, ao que é dado verificar, de consequências imprevisíveis.

 

Da soberania perdida na Europa, por ter sido retirada do centro da política, através da abdicação “...dos instrumentos de política que podem dar densidade material à autoridade política nacional”, segundo a opinião do investigador português João Rodrigues, até à imposição de uma autonomia artificial de um organismo como o MP, que deveria defender os interesses que a lei determinar, vai um passo muito curto, na denegação do virtuosismo e de uma certa “bondade” dos conceitos originais, particularmente no que se relaciona com o exercício da Democracia, que cada vez mais parece ser uma ilusão, porventura em vias de extinção.

 

E, por exigência factual, lembro o filósofo florentino Nicolau Maquiavel, que escreveu sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. E que a teoria política que ele vivenciou era, no fundo, uma política não democrática numa cidade cheia de conflitos internos e externos pelo poder e que sofria uma forte influência da igreja católica. São pontos de contacto terríveis, atendendo ao facto de ele ter vivido em pleno século XV.

O jornalista António Rodrigues escreveu, no passado 27 de Outubro, um artigo a que chamou “Bem-Vindos À Idade Média Versão 2.0” e em que, citando o jornalista israelita Gideon Levy, disse uma verdade que parece irrefutável, este é um tempo obscuro”.

 

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ZONAS CINZENTAS E SEUS HABITANTES

23 Novembro 2023

 

Multiplicam-se por todo lado as zonas cinzentas. Fruto alimentado no pântano em que se tornou o território social, em que predominam espécies em vias de crescimento e expansão, que compaginam com a mediocridade e o pensamento limitado e a que é suposto chamar “populismo”. Não têm qualquer problema em apelidar-se “moderados” e “do centro”, abjuram claramente teses que apelidam de “ideológicas”, as quais, no seu entender, atentam contra o interesse colectivo, que obviamente pensam representar. Para melhor se apresentarem, afirmam rejeitar “extremismos de direita e de esquerda”, colocando-se num eventual pedestal, que acreditam piamente ser trampolim para um eventual “desígnio”.

Pululam entre rádios e TV, escrevem em jornais e revistas, com pensamento qualificado em coisa nenhuma, passeiam diariamente a sua verborreia e anti-sabedoria. A única “qualificação” que parecem possuir é apenas o livre exercício da asneira e do disparate. 

 

Exemplos são aos montes e é difícil descobrir-lhes diferenças. Estão fervorosamente apostados em dominar o espaço público, que, para eles é o privado da mediania. Constituem-se como uma das zonas cinzentas da sociedade. Odeiam os trabalhadores e as suas organizações, que, para eles representam um perigo iminente, não só no aspecto formal, como no imaginário.

Aparentemente estudam os dossiês de forma leve e descuidada e facilmente caem em contradições, que, contudo, interpretam sempre de forma sobranceira. Citar-lhes os nomes é dar-lhes mérito que não têm. Um exemplo recente mostra uma dessas figuras menores a proclamar a morte do Partido Comunista Português e a “manifesta impossibilidade” em entrar numa solução governativa, porque está “contra a Ucrânia que todos defendemos”. Outro, perante a opinião do entrevistado sobre a natureza do Hamas, dizia, é “terrorista”, porque assim o classificam os EUA e a UE. 

 

O conceito de “zona cinzenta”, uma zona de contornos mal definidos, foi exposto pelo escritor italiano Primo Levi, baseado na sua experiência no campo da morte de Auschwitz, onde permaneceu durante quase um ano. Pensado e reflectido nas relações humanas em situações extremas, constitui um testemunho a uma análise da condição humana, um espaço nebuloso de indeterminação moral, conforme a classificação do professor brasileiro Aislan Maciera. Este investigador de Levi sustenta que é preciso sempre ter em vista os pontos cegos que definem as fronteiras das zonas cinzentas, para calibrar algumas respostas, através de uma cartografia própria.

Na sua última obra, “Os afogados e os sobreviventes”, concluída em 1986, um ano antes da sua morte, Primo Levi transforma em conceito a “zona cinzenta”, uma espécie de “chave de leitura”, uma ferramenta que abre as portas para novas possibilidades de interpretação de uma série de fenómenos nos campos da ética e da política.

 

Há uma asserção mortífera, que tem atravessado o espectro político, “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Para além da vacuidade formal, este “pensamento”, que pode incluir até um conceito, ou, no mínimo, uma postura, uma forma de instituir mais uma zona cinzenta, não abarca o essencial. Que é afinal o de “justiça política”, formulação onde cabe a correlação entre o cumprimento de objectivos pré-definidos, da natureza jurídica ou política, com as solicitações e necessidades específicas de justiça, respeitantes a grupos e comunidades definidas, teorizado pelo professor de filosofia política britânico John Rawls.

A base da justiça política pressupõe, por exemplo, que, em condições adversas e de exclusão, nomeadamente quando determinadas políticas públicas geram injustiças sociais evidentes, se instituam alterações no sentido de proteger os direitos fundamentais e na inserção social de comunidades desfavorecidas, ou mesmo, excluídas. A política determinará assim sempre a forma de interpretação, gestão e administração da justiça.

Os habitantes das zonas cinzentas não têm um património próprio. Quem os sustenta e alimenta detém a responsabilidade da sua existência e proliferação e investe provavelmente no vazio da sua insignificância. Mas, por outro lado, na sua capacidade como “influenciadores” de uma opinião pública carente e desprotegida. Não é certamente em nome do conhecimento e da cidadania. Mais parece ser um apelo à ignorância e à mediocridade, cultivando estes “valores”, que se traduzem no espectáculo mediático, se possível, com algum sangue à mistura. 

Os nativos destas zonas cultivam a ignorância e o medo. Falam alto, no pretenso bom som e na sua vontade de se fazerem simplesmente ouvir. Há os que detêm algum poder e, como tal, usam-no indiscriminadamente. Há outros, sem poder algum e que trepam por aí, com os meios que têm à disposição, nomeadamente nas redes sociais, um campo fértil ao mediatismo e à estupidificação e que desejam, acima de tudo, impor um estado contínuo de imediatismo ignorante, em que o outro é sempre um inimigo.

Saber compreender o carácter particular, e não geral, da verdade é um ensinamento que vem, pelo menos, do século XVIII, formulado pelo poeta inglês William Blake, homem que sempre resistiu à simplificação da experiência de pensamento. 

Nas zonas cinzentas não há lugar à relatividade e a verdade é uma e indivisível. 

 

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O “NÃO-SABER” É UMA ATITUDE

30 Novembro 2023

 

A capacidade de reconhecer que existem culturas diferentes, que deveriam merecem todo o respeito costuma ser designada pelo termo alteridade. Será eventualmente um passo importante na construção de uma sociedade mais justa e mais democrática. Existem na contemporaneidade algumas experiências de alteridade, por vezes desqualificadas, para contrariar a hegemonia de um tipo de saber dominante, que se baseiam substancialmente na incerteza e na perspectiva socrática do “não-saber”. Assim se constitui porventura uma poderosa fonte de descoberta.

 

O tema vem a propósito de uma excitante exposição, patente na Estação de metro de S. Bento, no Porto, com o título “L’École Du Non-Savoir”, ou “A Escola do Não-Saber”, que reúne obras de autores internacionais ligados ao design gráfico e foi apresentada no âmbito da Porto Design Biennale, de 21 de Outubro a 3 de Dezembro de 2023. O Autor é o designer franco-suíço Ruedi Baur, que lecciona na Universidade de Arte e Design de Genebra, na Escola de Artes Decorativas de Paris, na Luxun Academy Shenyang de Pequim e na International School of Percé do Quebec. A ideia original parte de um “conjunto de imagens que exploram a ideia de uma escola onde se trabalha aquilo que não sabemos, em vez daquilo que sabemos” e reúne trabalhos de estudantes de mais de 30 escolas e universidades internacionais, tendo como finalidade “transmitir conteúdos simples ou complexos dos quais não temos conhecimento”. São, no entender de Baur, conteúdos perdidos ou ignorados, “...grandes mistérios das nossas sociedades, mas também daquilo que poderemos descobrir no futuro no campo das ciências humanas, das ciências políticas e das ciências exactas”. 

A questão da representação está patente na Exposição. Na verdade, o trabalho de fundo do projecto é a representação do não-conhecimento, “...na convicção de que o diálogo entre as artes, o design, a ciência e a sociedade pode abrir novos horizontes para a compreensão e a apreensão de mundos conhecidos e ainda por descobrir”. A ideia será, com base numa abordagem interdisciplinar, poder questionar, “...a partir de diferentes pontos de vista e de diferentes pontos de partida, a nossa relação com o conhecido, o desconhecido, o escondido e o enterrado, e questionar tanto as representações como as formas de transmissão do não conhecimento”. Onde não são esquecidas as questões da actualidade, como a linguagem e a cultura, a história e o futuro, as tecnologias e a ciência, as migrações e as religiões, o Oriente e o Ocidente. E ainda o objectivo e o imaginário na representação do mundo. 

 

Uma das questões emergentes do novo século situa-se no eventual poder do não-saber. Quer porque vivemos um tempo de incertezas, quer ainda porque os avanços da técnica e das tecnologias não foram suficientes para garantir, nem mais igualdade, nem mais justiça social. A possibilidade de trabalhar aquilo que não sabemos, em vez daquilo que sabemos, poderá conduzir-nos ao desenvolvimento de narrativas próprias para transmitir conteúdos simples ou complexos dos quais não temos conhecimento. Como por exemplo, nas propostas da Escola do Não-Saber, para explicar coisas que foram esquecidas, ou que não foram descobertas, ou ainda para determinadas temáticas ou assuntos não-convenientes. 

 

Quando José Saramago diz, no “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, está de certa forma a enfrentar o desconhecimento e a suscitar todas as possíveis dúvidas, interrogações, e contradições da sociedade, particularmente numa situação de caos, em que as pessoas são transformadas em seres que lutam pela sobrevivência, face à desorganização ou à desestruturação sociais. Porque afinal a realidade é, ou pode ser, enganosa, o mundo não é só o que os olhos vêm, a imagem substitui o objecto, tudo parece relativo.

E aqui se pode colocar de novo a ideia de “representação”, centrada em conceitos do domínio do imaginário, como o mito e a memória, a utopia e a ideologia. O influente pensador do final do século XX que mais e melhor trabalhou sobre as “representações” foi o filósofo francês Cornelius Castoriadis, o Homem da “autonomia” e do grupo Socialismo ou Barbárie. Na sua obra "L'Institution imaginaire de la société” de 1975, o Autor levanta a questão da possibilidade efectiva de transformação social, afirmando que a história fez nascer um projecto que é o nosso, pois nele reconhecemos as nossas mais profundas aspirações, e pensamos que é viável, neste espaço e neste tempo. E ainda, que a transformação passa pela questão do instituinte e da autonomia, instâncias possivelmente de um qualquer contra-poder. 

 

Uma das melhores proposições de Ruedi Baur, sobre a sua exposição, foi, sem qualquer dívida que “cada imagem é em si mesma uma afirmação, e o nosso sistema educativo ensina-nos a persuadir em vez de questionar”. Associar hoje a transformação à necessidade premente de dotar a Escola dos instrumentos necessários de contra-poder é o mesmo que “fundar” uma nova escola baseada na mediação e na desconstrução. E se ela quer ser o contraponto entre “saber” e não-saber”, de forma a tornar o “não-saber” como atitude.

Se fosse possível reconhecer o que não sabemos encontraríamos decerto a melhor forma de combater uma eventual “ignorância” e desencadear, a partir daí, um processo contínuo de aprendizagem.

 

 


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